“Sou completamente contra as cotas raciais!” A frase saiu tão clara e franca que por cinco segundos fiquei ali parada, olhando-a fixamente. Tentei me recompor e a questionei: “Por quê?” Eu realmente queria conhecer os argumentos que ela apresentaria. Foram estes: “Não são apenas os negros que moram em favelas no Brasil; existem muitos negros com excelente educação se beneficiando das cotas raciais; e somos todos iguais perante a lei”

Enquanto eu a ouvia argumentando sobre cada um dos pontos, veio à minha mente o artigo de Djamila Ribeiro – filósofa, escritora e feminista negra, que diz: “Ser contra as cotas raciais é concordar com a perpetuação do racismo”. Ser racista não é apenas ofender, xingar ou depreciar. Ser racista é concordar com um sistema de opressão que privilegia um grupo em detrimento de outro. Ser racista é verificar que brancos galgando altos postos na cadeia social é natural, mas ver negros nesses mesmos postos é estranho.

Discursos como esses de que brancos também vivem na favela já se tornaram corriqueiros nos lábios daqueles que não conseguem perceber o tamanho da desigualdade existente no Brasil. São pessoas que ainda acreditam “que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de interesse”.

Esquecem que os povos negros e indígenas foram escravizados no Brasil por mais de 300 anos. Que o racismo estrutural mexeu com a constituição psíquica dos afrodescendentes, a ponto de muitos ainda se considerarem indignos de ar lugares como universidades ou atingir níveis elevados na estrutura social.

O argumento de que existem muitos negros com excelente educação se beneficiando das cotas raciais é errôneo, porque as cotas raciais não são benefícios, fazem parte de políticas de ações afirmativas e são temporárias. Surgem como oportunidade para negros e indígenas alcançarem patamares que lhes são negados há séculos. E, apesar de 56,2% da população brasileira se autodeclarar negra, negros com excelente educação ainda são minoria no país.

Situação financeira não exclui pessoa de ser vítima do racismo

A oportunidade de utilizar as cotas raciais é direito de toda pessoa negra. Mesmo frequentando as melhores instituições de ensino, ou tendo o a um amplo capital cultural, ela continua sendo preta e, muitas vezes, estigmatizada. O respaldo financeiro não é suficiente para isentar uma pessoa de sofrer racismo. Veja o caso dos filhos dos atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso que em um restaurante em Portugal sofreram racismo, foram chamados de “pretos imundos” por uma europeia que ainda carrega na mente o pensamento de superioridade. A que ponto chegamos? Crianças negras desumanizadas por estereótipos.

A Constituição Federal realmente descreve em seu artigo 5º que “todos são iguais perante a lei”, todavia há que se olhar com nitidez para a existência das duas óticas da igualdade constitucional: a ótica formal, que se preocupa exclusivamente com a legalidade, e a ótica material, que se preocupa com a concretização desse direito, assegurando a igualdade de oportunidade no seio da coletividade. E é a ótica material que respalda as políticas de cotas.

É importante salientar que as políticas de cotas são raciais e sociais, ou seja, beneficiam negros, indígenas, estrangeiros, pessoas com deficiência e estudantes que cursaram a rede pública de ensino. Sonhamos com o dia em que as cotas já não serão necessárias, dia que ainda não chegou. Cabe a nós, portanto, conhecer, compreender, refletir e dialogar sobre essa temática, ainda tão sensível em nossa sociedade.

* Gisley Monteiro de Monteiro é professora de estudo das relações étnico-raciais no Centro Universitário Internacional Uninter, licenciada em letras e mestra em educação social