Di Cavalcanti ele tem. Volpi, Portinari e Iberê Camargo também. Lygia Clark e Amilcar de Castro estão bem ali. Adriana Varejão, Vik Muniz, Beatriz Milhazes em outro canto. Todos são nomes gigantescos da arte brasileira e mundial. O provável maior acervo de artes visuais em Belo Horizonte não fica no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Museu Mineiro nem no Palácio das Artes. Está abrigado em um apartamento de 1.000 m² no bairro Sion, na região Centro-Sul da capital. O proprietário é o psiquiatra Delcir da Costa, 79. Ao lado de sua mulher, Regina, ambos alucinados por arte, ele mantém uma coleção, iniciada em 1971 com telas dos pintores Ildeu Moreira e Yara Tupinambá. ados 50 anos desde o casamento dos dois, o acervo atual já soma cerca de 3.000 obras de arte.

“A coleção foi tomando um volume fantástico, e perdi o controle”, assume, bem-humorado. Delcir vai mostrando o acervo e comenta com desenvoltura detalhes das obras. Por elas, diz que sente “tesão intelectual”. Seu gosto é amplo e abarca diversos movimentos artísticos, mas o período da pintura clássica não está nesse escopo. Não há nenhum recôndito do imóvel que não tenha quadros, desenhos, tapetes, instalações, bustos e esculturas – nem mesmo o banheiro. 

De encher os olhos

Na sala de televisão, a notícia de um grave acidente no Anel Rodoviário disputa a atenção com uma parede tomada por telas assinadas por Inimá de Paula. “Tem pessoas que colecionam automóvel, dinheiro, mulheres. Eu gosto de colecionar arte”, demarca. 

Uma parte da história das artes visuais em Minas Gerais encontra-se ali em exibição restrita. Aníbal Mattos, Genesco Murta, Jeanne Milde, Burle Marx, Guignard, Décio Noviello, Maria Helena Andrés – é como se uma bienal de artes estivesse montada na sala de estar e arredores. Registros da histórica performance que Artur Barrio fez em 1970 no ribeirão Arrudas, próximo ao Parque Municipal, em plena ditadura militar, estão sob os cuidados do colecionador. “Ele usou trouxas de sangue, e a polícia achou que eram corpos humanos”, explica Delcir, que calcula ter alguma coisa de praticamente todos os artistas mineiros desde o início do século ado.

Ele não revela o valor do acervo e se assume um acumulador. “Seria uma doença, mas eu prefiro não ser tratado, senão vou perder minha graça de viver”, declara. Vários artistas que constam em seu acervo são disputados em leilões internacionais por dezenas de milhares de reais e até milhões. Beatriz Milhazes, por exemplo, teve a tela “Meu Limão” vendida por US$ 2,1 milhões em 2012 na prestigiosa casa de leilões Sotheby’s, na unidade de Nova York. Quatro anos depois, outro quadro dela foi negociado por R$ 16 milhões durante a abertura da feira SP-Arte.

Milhazes pertence ao grupo conhecido como “Geração 80”, pelo qual Delcir tem apreço especial. Concretismo e neoconcretismo também ganham mais destaque na expografia privada, assim como a arte moderna. Outros integrantes do coletivo de Milhazes estão presentes – o celebrado Leonilson, Ana Horta, Luiz Ernesto, Luiz Zerbini, Adriana Varejão. Adriana é outra que consegue cifras milionárias no exterior e tem uma galeria em seu nome no Inhotim, o museu de arte contemporânea situado em Brumadinho, na região metropolitana da capital. 

Acervo amplo

Jovens artistas que estão movimentando a cena contemporânea também estão no radar calibrado de Delcir. De um guarda-roupa ele tira um caderno de esboços de Desali, artista de Contagem cujo trabalho em intenso diálogo com o cenário urbano está conquistando reconhecimento nacional. 

Uma bela obra de Cinthia Marcelle reluz em uma sala – a belo-horizontina recebeu menção honrosa na Bienal de Veneza em 2017, uma das mais importantes do mundo.

Bem perto, a constelação de nomes celebrados no meio das artes visuais continua com Claudia Andujar, Cildo Meireles, Cícero Dias, Cao Guimarães. “Atualmente tenho adquirido uma série de fotografias”, diz.

Sentimentos ambíguos sobre Belo Horizonte

Pessoas próximas se iram com o comprometimento do psiquiatra Delcir da Costa com a coleção. “Ele sempre me perguntava se tinha quadros na casa das minhas amigas e quais eram os artistas. Ele é minha inspiração”, diz a psicóloga infantil Júlia Costa, filha de Delcir. 

Para o escultor e produtor cultural Leandro Gabriel, o colecionismo do psiquiatra cativa pela proximidade criada com cada artista. “Ele não compra só artistas famosos, tem um olhar sensível para os que estão começando. Não é colecionar só por colecionar”, avalia. 

Os sentimentos de Delcir sobre Belo Horizonte são ambíguos. “É a melhor cidade do mundo”, afirma em um momento, para depois dizer que a capital peca em não prestigiar os artistas locais.

“Ficar aqui em Minas é difícil”, critica. Lamenta que a cidade não tenha, segundo ele, um museu robusto de fato e diz que sua casa é o maior museu privado de Belo Horizonte. “Sou vaidoso de falar, não tenho vergonha”, declara. Não bastasse, ele tem ainda uma galeria de arte chamada Singular, no Lourdes. Com tantos quadros importantes, será que ainda falta algum? 

“Eu não tenho sonhos. Não vou querer o que é impossível, eu acho isso bobagem”, responde. Para a alegria dos artistas que colocam obras à venda, pisar no freio não está nos planos do colecionador. “Espero que isso aconteça com a morte ou com o Alzheimer”, diz. “Quando eu morrer, não sei o que vai acontecer. Vai ficar aí, entende?”, finaliza.